“Malcolm era a grande possibilidade. Ele era a encarnação da nova consciência que o homem negro tinha de si mesmo — a nova militância, a nova exigência por respeito. Malcolm era a personificação da negritude em ascensão.”
— James Baldwin, 1967
Neste dia 19 de maio de 2025, celebramos o centenário de nascimento de Malcolm X. Não se trata, aqui, de uma efeméride qualquer. Cem anos depois, sua figura permanece entre as mais temidas e, por isso mesmo, mais necessárias ao nosso tempo. Malcolm X não é um mártir domesticado. Ele é um revolucionário — e sua memória nos convoca a pensar a violência estrutural do mundo com a mesma franqueza com que ele desafiou impérios, dogmas e ilusões.
Em geral, o que se conhece de Malcolm X resulta da mitificação de sua figura: o órfão que mergulha na criminalidade e, na prisão, se converte em militante do islamismo negro, reinventando-se como ícone da resistência. A vida de Malcolm é, de fato, extraordinária — mas sua grandeza está menos em sua biografia e mais em sua lucidez. Ao contrário do que a indústria cultural muitas vezes sugere, ele não é apenas um “símbolo”. É um pensamento vivo, um gesto de ruptura, uma ideia perigosa.
Por isso, Malcolm X jamais se deixou domesticar. Sua imagem inspira lutas em todos os continentes. Da juventude de Soweto às favelas brasileiras, dos coletivos afropunks na Europa à luta palestina, Malcolm tornou-se verbo. “Ele é o nosso brilhante príncipe negro”, diria Ossie Davis em seu histórico elogio fúnebre. Na música, os Racionais MC’s o incorporaram como símbolo; no cinema, Spike Lee o imortalizou; na literatura, Amiri Baraka e James Baldwin reconheceram nele a força que devolveu dignidade à linguagem e raiva à poesia.
Contudo, à medida que sua imagem se convertia em mito global, o pensamento radical de Malcolm X foi sendo suavizado, eclipsado ou adaptado para caber em molduras palatáveis. Sua revolta profunda contra a supremacia branca, contra o capitalismo e contra a hipocrisia dos discursos ocidentais sobre democracia foi sendo deslocada por slogans de inclusão. Mas os discursos de Malcolm X, agora reunidos em livros como Há uma revolução em andamento: discursos de Malcolm X (ed. Lavra Palavra, 2020), revelam um homem que não pedia “mais direitos” — exigia um novo mundo.
Malcolm X compreendia que a opressão racial não era mero desvio da ordem democrática, mas pilar do sistema. “Você não pode ter capitalismo sem racismo”, dizia, antecipando o que autores como Angela Davis e Cedric Robinson aprofundariam ao falar de “capitalismo racial”. Mais do que isso: Malcolm X enxergava a supremacia branca como forma específica de dominação num mundo globalmente estruturado por relações econômicas coloniais. Por isso, solidarizou-se com os povos da África, da Ásia e da América Latina.
E se sua crítica ao capitalismo e ao colonialismo incomodava, sua visão sobre a branquitude provocava ainda mais. Para Malcolm, o branco não é essencialmente inimigo — é estruturalmente cúmplice de um mundo forjado pelo privilégio racial. A questão não era biológica, mas política. Em um de seus discursos mais incisivos, Malcolm afirmou: “Trabalharemos com qualquer pessoa, com qualquer grupo, desde que estejam realmente interessados em tomar as medidas necessárias para pôr fim às injustiças que afligem os negros.” A aliança, portanto, não se dava por apelo moral, mas por compromisso com a destruição do sistema que alimenta o racismo.
Daí sua crítica aos “aliados” que desejam liderar a luta negra ou moderá-la em nome da boa convivência. O verdadeiro aliado, para Malcolm, era aquele que aceitava o custo da contraviolência e não desviava o olhar diante do sangue negro derramado. Não queria algodões entre cristais, mas companheiros dispostos a enfrentar a máquina de moer gente, mesmo quando ela vestia togas, ternos ou batinas.
Cem anos depois, a atualidade de Malcolm X salta aos olhos. A violência policial, o encarceramento em massa, a necropolítica que dizima populações inteiras não são acidentes: são sintomas de um mundo cuja lógica racial continua operando a pleno vapor. E foi sobre esse mundo que Malcolm X ergueu sua voz, como quem diz: “Não aceitaremos mais viver como animais. Somos seres humanos. E exigimos ser tratados como tais.”
Ao olhar para o século XXI, vemos que o alerta de Malcolm se cumpriu: “O mundo é uma bomba prestes a explodir.” Seu apelo à solidariedade entre povos oprimidos e à construção de um novo internacionalismo permanece como tarefa pendente. Hoje, quando falamos em universalismo insurgente e jovens em todo o globo se levantam contra o genocídio e a desigualdade, a figura de Malcolm X ressurge como bússola ética e política.
Agradeço imensamente pela contribuição, Prof. Silvio!
Bom, nesses 100 anos de Malcolm e uma coisa que não podemos deixar de compreender é o legado dele em torno da luta nacionalista preta. Separatista preto. Garveista. Termos que não aparecem nas interpretações revisionistas. Malcolm não era o garoto propaganda do terceiro mundismo, pode ser o Fanon, mas Malcolm em sua história concreta lutou até o fim pela emancipação do seu povo antes de tudo. Não podemos relativizar, Silvio.